Heródoto Barbeiro: aprender sobre si

O mestre Doguem dizia que aprender o caminho de Buda é aprender sobre si. Aprender sobre si mesmo é esquecer de si. Esquecer-se de si é estar iluminado por todas as coisas do mundo. Estar iluminado por todas as coisas do mundo é prescindir do corpo e da mente próprios. Para tentar pôr em prática o ensinamento de Doguem, deve-se preservar o silêncio. A fala do mestre é um encadeamento lógico e seguir adiante trará o entendimento de que a existência humana não passa de miséria. Isso reforça a ideia de que a vida não pode ser modificada apenas ao sabor de nossa vontade. Desrespeitar essa regra proporciona um descompasso entre o que desejamos e o que vivemos de fato; ou melhor, geramos o sofrimento.

Heródoto Barbeiro, em Buda: O Mito e a Realidade

Foto: Zheka Kapusta

Thich Nhat Hanh: lavar a louça

Enquanto se lava a louça, deve-se apenas lavar a louça, o que quer dizer que, enquanto se lava a louça, deve-se estar completamente atento ao fato de que se está lavando a louça. À primeira vista, isso pode parecer um pouco bobo: por que colocar tanta importância em algo tão simples? Mas é justamente esse o ponto. O fato de eu estar de pé lavando essas tigelas é uma realidade maravilhosa. Estou sendo eu mesmo completamente, seguindo minha respiração, consciente da minha presença e consciente de meus pensamentos e ações. Não há maneira de eu ser jogado pra lá e pra cá como uma garrafa agitada pelas ondas.

(…)

Se, enquanto lavamos a louça, pensamos apenas na xícara de chá que nos espera e consequentemente nos apressamos para nos livrarmos da louça como se ela fosse um incômodo, então não estamos lavando a louça corretamente. Pior ainda, não estamos vivos no tempo em que lavamos a louça. Na verdade, dessa forma, ficamos totalmente incapazes de nos dar conta do milagre da vida enquanto estamos na frente da pia. Se não somos capazes de lavar a louça, há a chance de que também não seremos capazes de tomar o nosso chá. Enquanto bebemos a xícara de chá, estaremos pensando em outras coisas, mal percebendo a xícara nas nossas mãos. Então, somos sugados para o futuro — sem a possibilidade de viver, de fato, um minuto da vida.

Thich Nhat Hanh, em The Miracle of Mindfulness

Foto: Matthew Tkocz

Peter D. Santina: a lembrança da morte

É dito que a lembrança da morte é, em especial, uma amiga e mestra para aquele que quer praticar o Darma. Lembrar da morte age como um desencorajador para o apego e a má-vontade excessivos. Quantas disputas, discordâncias fúteis, grandes ambições e inimizades não se tornam insignificantes quando se reconhece a inevitabilidade da morte? Através dos séculos, professores budistas têm encorajado os praticantes sinceros do Darma a lembrarem-se da morte, a lembrarem-se da impermanência desta personalidade. Há alguns anos, eu tive um amigo que foi para a Índia para estudar meditação. Ele se aproximou de um mestre budista muito renomado e sábio e pediu algumas instruções sobre meditação. O mestre estava relutante em orientá-lo porque não estava confiante da sua sinceridade. Meu amigo insistiu várias vezes. Finalmente, o mestre lhe disse para retornar no dia seguinte. Cheio de expectativa, meu amigo foi vê-lo conforme combinado. O mestre lhe disse: “Você vai morrer; medite sobre isso.”

Peter D. Santina

Foto: Rubén Bagüés

Stephen Batchelor: escondendo-se no mundo

O dilema do príncipe Sidarta nos encara ainda hoje. Nós também nos fechamos nos ‘palácios’ daquilo que é familiar e seguro. Nós também sentimos que a vida é mais do que satisfazer desejos e afastar medos. Nós também sentimos mais angústia quando quebramos nossa rotina habitual e nos percebemos pairando entre o nascimento e a morte – nosso nascimento e nossa morte. Descobrimos que fomos jogados, aparentemente sem escolha, num mundo que não foi feito por nós. A saída dolorosa do útero da mãe é piedosamente esquecida. Mas, ao adquirir consciência, nos damos conta de que a única certeza na vida é que ela terminará. Não gostamos da ideia; tentamos esquecer isso também. Colaboramos com o esquecimento uns dos outros.

Os pais buscam preparar os seus filhos para a vida. As instituições sociais e políticas existem para beneficiar os vivos, não os mortos. As religiões oferecem amplamente um consolo: talvez exista uma chance de que não vamos de fato morrer. De uma forma ou de outra, atuamos para evitar as questões que a existência levanta, considerando nascimento e morte como eventos físicos no tempo e no espaço: a inspiração da primeira lufada de ar e a expiração da última. Eles se tornam fatos isolados, problemáticos mas administráveis quando mantidos à distância do aqui e do agora, onde estamos seguros tratando de passar por mais um dia. A vida se torna, então, um exercício de lidar com o específico.

Buscamos organizar os detalhes do nosso mundo de uma forma que nos sintamos seguros: cercados daquilo que gostamos, protegidos daquilo de que não gostamos. Uma vez que nossa existência material esteja mais ou menos em ordem, podemos voltar nossa atenção ao manejo psíquico das nossas neuroses. Se isso falhar, as maiores ansiedades podem ser mantidas afastadas por um uso criterioso de medicamentos. Essa abordagem funciona bem até que aquilo que não é administrável surja novamente na forma de doença, envelhecimento, culpa, dor, luto, desespero. Não importa quão bem manejemos nossas vidas, quão convincente é a imagem de bem estar que projetamos, nós continuamos a nos envolver com aquilo que odiamos e a perder aquilo que amamos.

Continuamos a não conseguir aquilo que queremos e a não evitar o que não queremos. É claro, experimentamos alegria, sucesso, amor, êxtase. Mas no fim das contas nos vemos mais uma vez inclinados à angústia. Podemos saber disso, mas de fato compreendemos? Percebemos isso, até nos espantamos, mas o hábito nos impele a esquecer. Escondemos isso de nós mesmos e corremos de volta para o mundo que nos promete algo inatingível. Pois, se de fato conseguíssemos compreender, mesmo por um instante, isso poderia mudar tudo.

Stephen Batchelor, em Buddhism without Beliefs (p.22-23)

Foto: Raimond Klavins

Bhikkhu Boddhi: renúncia

O Buda não sugere que todos deixem suas vidas domésticas para tornarem-se monges ou pede a seus seguidores que descartem todos os prazeres sensoriais de imediato. O grau em que uma pessoa renuncia depende da sua disposição e situação. Mas o que permanece como um princípio guia é: atingir a libertação requer a erradicação completa do apego e o progresso ao longo do caminho é acelerado na medida em que se supera o apego.

Bhikkhu Boddhi

Foto: Nicolas Häns

Ajahn Chah: isso é meditação

O Buda disse que quando experimentamos visões, sons, sabores, odores, sensações corporais ou estados mentais, devemos largá-los. Quando o ouvido ouve um som, deixe-o ir. Quando o nariz sente um odor, deixe-o ir… Deixe-o no nariz! Quando uma sensação corporal surge, abandone o gosto ou desgosto que se segue, deixe-os retornar para onde vieram. O mesmo para estados mentais. Todas essas coisas, deixe-as ir embora. Isso é sabedoria. Seja felicidade ou infelicidade, tudo é o mesmo. Isso se chama meditação.

Ajahn Chah

Foto: Caroline

Hubert Benoit: impotência e humilhação

muro de tijolos

O problema da angústia humana está todo contido no problema da humilhação. Curar-se da angústia é livrar-se de toda possibilidade de humilhação. De onde vem essa humilhação? De me ver impotente? Não; isso não é suficiente. Ela deriva da minha vã tentativa de não perceber a minha impotência real. Não é a impotência em si que faz a humilhação, mas o impacto sofrido pela minha pretensão à onipotência quando ela entra em choque com a realidade das coisas. Eu não me sinto humilhado porque o mundo exterior me nega, mas pelo malogro do meu empenho em aniquilar essa negação. A verdadeira causa da minha angústia não está nunca no mundo exterior: ela está somente na reivindicação que lanço para fora e que se esfacela de encontro ao muro da realidade. Estou errado quando me queixo de que o muro se tenha desmoronado sobre mim e me tenha ferido; eu é que me feri esbarrando nele; foi o meu próprio movimento que provocou o meu sofrimento. Quando eu deixar de pretender, nunca mais nada me há de ferir.

(…)

Na nossa ânsia de, finalmente, escapar da angústia, nós buscamos doutrinas salvadoras, procuramos “gurus”. Mas o verdadeiro guru não está longe: está diante de nossos olhos e nos oferece constantemente o seu ensinamento: é a realidade tal como ela é, é a nossa vida cotidiana. A evidência redentora está debaixo de nossos olhos, evidência da nossa não-onipotência, evidência de que a nossa pretensão é radicalmente absurda, impossível, e, portanto, ilusória, inexistente; evidência de que não há nada a recear para esperanças que não têm nenhuma realidade; evidência de que estou e sempre estive no chão, não havendo portanto nenhuma possibilidade de uma queda, nenhum motivo para vertigens.

Hubert Benoit, em A Doutrina Suprema

Ajahn Chah: nós somos os sankharas

pássaro cantanto

A visão errada é que os sankharas* somos nós, nós somos os sankharas, ou que a felicidade e a infelicidade somos nós mesmos, nós somos felicidade e infelicidade. Ver as coisas dessa forma não é ter conhecimento completo e claro da verdadeira natureza das coisas. A verdade é que não podemos forçar todas essas coisas a seguir os nossos desejos; elas seguem o caminho da natureza. (…) É o que acontece com os sankharas. Nós dizemos que eles os perturbam, como quando sentamos em meditação e ouvimos um som. Pensamos: “oh, aquele som está me perturbando”. Se entendemos que o som nos perturba, então sofreremos de acordo com essa percepção. Mas, se investigarmos um pouco mais profundamente, veremos que somos nós que perturbamos o som! O som é simplesmente som. Se entendemos isso então se torna simples e podemos deixá-lo em paz. Vemos que o som é uma coisa, nós somos outra. Alguém que acha que o som vem para perturbá-lo é alguém que não vê a si mesmo. Ele realmente não vê! Uma vez que você se veja, você estará calmo. O som é apenas som, por que você deveria agarrá-lo? Você percebe que na verdade foi você que perturbou o som.

*palavra originada do Pali que se refere aos fenômenos condicionados

Ajahn Chah, numa assembleia de monges e leigos em 1970

Foto: Claus H. Godbersen

O homem flechado: uma parábola budista

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Um homem ferido por uma flecha deseja saber quem atirou a flecha, de que direção ela veio, se a flecha é feita de osso ou metal, se a haste é desse ou daquele tipo de madeira antes de remover a flecha do corpo. Este homem se assemelha a aqueles que querem saber a origem do universo, se o mundo é eterno ou não, finito ou não antes de se associar ou praticar uma religião. Da mesma forma que o homem na parábola morrerá antes de ter respondidas suas questões sobre a origem e natureza da flecha, estas pessoas morrerão antes de ter as respostas para essas questões irrelevantes.

Peter D. Santina