“Se, na posse de um certo corpo”, disse o Buda, “alguém se considera superior e despreza os outros — isso se deve a nada mais do que ignorância”. Este organismo carnal, nascido do ventre de uma mãe e destinado a terminar como pó, é o grande equalizador das coisas. Disseque um cão ou um gato, um peixe ou uma ave, e sob a pele você encontra carne, sangue e ossos como os seus. (…) Quebre a matéria orgânica em proteínas e genes, e encontramos nossa herança comum com todos os seres vivos, de algas a bactérias. Analise os genes enquanto moléculas, átomos e quarks e tocamos o que compartilhamos com pérolas e cometas.
Nosso sofrimento vem do apego que temos com ideais, e da forma complexa que criamos a respeito de como as coisas são. Nunca somos o que devemos ser de acordo com nossos ideais mais altos. A vida, os outros, o país em que vivemos, o mundo em que vivemos – as coisas nunca parecem ser o que deveriam. Tornamo-nos muito críticos de tudo e de nós mesmos: “eu sei que deveria ser mais paciente, mas eu não consigo ser paciente”… Veja todos os “devos” e “não devos” e os desejos: querer o agradável, querer se tornar algo ou se livrar do feio e do doloroso. É como se houvesse alguém atrás da cerca dizendo, “eu quero isto e não gosto daquilo”. As coisas devem ser deste jeito e não daquele jeito.” Use seu tempo para ouvir a mente reclamando; traga-a para a consciência.
Basicamente, a ignorância é a ideia de um self permanente e independente. É essa concepção de um “eu” oposto e separado das pessoas e coisas à nossa volta. Uma vez que temos a noção de “eu”, temos uma inclinação a favorecer as coisas que sustentam esse “eu” e rejeitar as coisas que ameaçam esse “eu”. (…) Ignorância é desconhecer que o chamado “eu”, o self, é apenas um nome conveniente para um conjunto de fatores dependentes, contingentes e em constante mudança. Existe uma floresta separada das árvores? O “eu” é apenas um nome conveniente para um conjunto de processos.
O fiel desta ou daquela religião dirá que “Deus” é a autoridade que lhe impõe o dever de sua salvação. Mas quem é esse “Deus” que, ao me impor algo, é distinto de mim e tem necessidade da minha ação? Acaso não está tudo incluído em sua perfeita harmonia? O mesmo erro pode ser encontrado em alguns homens cujo desenvolvimento intelectual seria suficiente para não lhes permitir crer num “Deus” pessoal. Embora pareçam não mais fazê-lo, se os observamos com mais atenção, vemos que eles acreditam nesse tipo de “Deus”. Imaginam o seu satori, e eles mesmos depois do satori, e eis aí o seu “Deus” pessoal, ídolo restritivo, inquietante implacável. É preciso que eles se realizem, se libertem, se atemorizem diante do pensamento de não consegui-lo, se exaltem diante desse fenômeno interior que lhes dá esperança. Há aí a “ambição espiritual” — necessariamente acompanhada da ideia absurda do “Super-homem” que se deve vir a ser, com a reivindicação desse vir-a-ser — e angústia.
No momento em que surge, o desejo cria em nós um senso de falta, a dor do querer. Para acabar com essa dor nos esforçamos para satisfazer o desejo. Se o nosso esforço não é bem sucedido, experimentamos frustração, desapontamento, às vezes desespero. Mas mesmo o prazer do sucesso não é pleno. Nos preocupamos em perder aquilo que conseguimos. Sentimo-nos completos a garantir nossa posição, ganhar mais, subir mais, controlar mais. As demandas do desejo parecem não ter fim, e cada desejo demanda o eterno: queremos que as coisas que conseguimos durem para sempre. Mas todos os objetos do desejo são impermanentes.
Quantas vezes você tem que sentir culpa pelo seu aborto ou pelos erros que você cometeu no passado? Você tem que passar todo o seu tempo regurgitando as coisas que aconteceram na sua vida e mergulhando em análises e especulações sem fim? Algumas pessoas se fazem tão complicadas. Se você ceder às suas memórias, visões e opiniões sem fazer mais nada, então você ficará para sempre preso(a) neste mundo e nunca o transcenderá. (…) Você pode abandonar esse fardo se usar os ensinamentos de maneira hábil. Diga a si mesmo(a): “Não vou me deixar ser pego por isso novamente; recuso-me a participar desse jogo. Não vou ceder a esse humor.” Comece a se colocar na posição de saber: “eu sei que isso é dukkha; há a presença de dukkha.”
[1] Como aspiro às realizações mais elevadas, Muito mais preciosas que uma joia realizadora de desejos, Momento a momento devo cuidar De todos os outros seres sencientes.
[2] Sempre que eu estiver com os outros, Devo sentir que eu e os meus desejos não são importantes E, das profundezas do meu coração, Devo cuidar dos outros em primeiro lugar.
[3] Atento a todas as minhas ações do corpo, da fala e da mente, Em todos os momentos em que uma ilusão se manifestar, Levando a mim e aos outros a agir inadequadamente, Devo enfrentá-la e impedir que ela cresça.
[4] Sempre que eu encontrar pessoas Cheias de maldade e de emoções obscuras, Devo considerá-las como muito especiais, Como se tivesse encontrado um tesouro precioso.
[5] Quando outras pessoas Me causarem dificuldades devido à inveja, Devo tomar para mim a derrota E lhes oferecer a vitória.
[6] Mesmo que alguém de quem eu tenha cuidado de forma especial E em quem eu tenha depositado confiança Se volte contra mim, Devo enxergá-lo como meu mestre supremo.
[7] Concluindo, eu devo oferecer, direta e indiretamente, Cada benefício e felicidade a todos os seres, minhas mães, E tomar para mim, secretamente, Todas as suas dores e sofrimentos.
[8] Livre dos distúrbios dos oito sentimentos desequilibrados E enxergando todas as coisas como ilusões, Que eu possa ser libertado da prisão dos pensamentos negativos.
Todos nós partilhamos uma existência marcada pelo sofrimento e a impermanência. Quando reconhecemos o quanto temos em comum, vemos que não há sentido em sermos beligerantes uns com os outros. Considere um grupo de prisioneiros prestes a ser executados. Durante sua permanência juntos na prisão, todos encontrarão seu fim. Não há sentido em brigar durante os dias que lhes restam. Como esses prisioneiros, todos nós estamos ligados pelo sofrimento e a impermanência. Nessas circunstâncias, não há absolutamente nenhuma razão para lutarmos uns contra os outros ou desperdiçarmos toda a nossa energia, tanto física quanto mental, para acumular dinheiro e bens.
No meu caso pessoal, a prática mais forte e mais eficaz para ajudar a tolerar o sofrimento consiste em ver e entender que o sofrimento é a natureza essencial do samsara, da existência não iluminada. Ora, quando passamos por alguma dor física ou qualquer outro problema, naturalmente naquele instante há uma sensação de queixa, porque o sofrimento é muito forte. Há um sentimento de rejeição associado ao sofrimento, como se não devêssemos estar passando por aquilo. Naquele instante, porém, se pudermos encarar a situação de outro ângulo e perceber que este corpo é a própria base do sofrimento isso reduz aquele sentimento de rejeição… Aquele sentimento de que de algum modo não merecemos sofrer, de que somo vítimas. Portanto, uma vez que compreendemos e aceitamos essa realidade, passaremos a vivenciar o sofrimento como algo que é perfeitamente natural.
A respiração consciente nos ajuda a parar de nos preocupar com as tristezas do passado e as ansiedades do futuro. Ajuda-nos a entrar em contato com a vida no momento presente. (..) Às vezes parece que há um gravador dentro de nossa cabeça – ligado dia e noite – e não conseguimos desligá-lo. Ficamos preocupados, tensos e temos pesadelos. Quando praticamos a atenção plena, começamos a ouvir realmente pela primeira vez a fita que está no gravador de nossa mente, e então percebemos quais os pensamentos úteis e quais os inúteis.
Thich Nhat Hanh: A Essência dos Ensinamentos de Buda